Novas ferramentas buscam prevenir doenças hereditárias e corrigir erros genéticos, além de ampliar a compreensão de condições como a infertilidade
Nos últimos anos, algumas notícias colocaram a inovação em evidência na medicina reprodutiva. Um dos destaques mais recentes, em abril, foi o nascimento do primeiro bebê concebido por meio de fertilização in vitro automatizada. O caso, que ocorreu em Guadalajara, no México, envolveu automação em grande parte dos processos. Durante o procedimento, o espermatozoide foi injetado no óvulo com uso de tecnologia e, posteriormente, implantado no útero da mãe.
Antes, em 2023, nasceram os primeiros bebês com DNA de três pessoas, a partir da técnica de doação mitocondrial. Essa inovação já gerou ao menos oito nascimentos nos últimos anos na Inglaterra, onde é permitida. O objetivo é evitar a transferência de doenças hereditárias: o óvulo da mãe é fertilizado com o espermatozoide do pai, e o núcleo do embrião é transferido para o óvulo de uma doadora. Assim, a mutação mitocondrial da mãe não é passada ao feto.
Esses exemplos ilustram o potencial da medicina reprodutiva em criar novas possibilidades de concepção e nascimento a partir da tecnologia. As técnicas mais promissoras do campo envolvem desde a seleção genética do embrião mais saudável até a promessa da edição gênica, que possibilitaria atenuar doenças e condições genéticas.
Além disso, a automatização de processos por meio da inteligência artificial e outros recursos, possibilitam chegar a um grau de precisão na transferência do embrião para o útero e no monitoramento da sua qualidade no laboratório.
“Todos esses avanços tecnológicos nos levam ao nosso objetivo, que é o nascimento de uma criança saudável, de uma maneira mais efetiva, mais rápida, com mais segurança”, comenta Emerson Cordts, ginecologista especialista em Reprodução Humana e diretor do Comitê de Ética Médica da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
As inovações, ainda que iniciais, fomentam um campo com muito potencial, na visão de Ryan Flannigan, professor e diretor do Centro de Medicina Reprodutiva e Sexual do Departamento de Ciências Urológicas da Universidade de British Columbia (UBC). “É um momento muito empolgante, pois muitas dessas inovações tecnológicas levam a novas técnicas aplicadas à clínica”. A inteligência artificial, por exemplo, otimiza processos e, assim, leva a melhores resultados com maior eficiência.
Sua aposta é que a abordagem personalizada presente em outras áreas da medicina também deve predominar na medicina reprodutiva. Com novas técnicas, será possível, por exemplo, capturar a heterogeneidade e diversidade de patologias como a infertilidade. E, para isso, os avanços na área de pesquisa têm sido fundamentais. “Estamos conseguindo responder perguntas que antes não conseguíamos, o que está na base para a criação de novas estratégias terapêuticas”, comenta o pesquisador.
A evolução de técnicas da reprodução assistida
A reprodução assistida já nasce como uma área naturalmente voltada à inovação e ao uso de novas tecnologias. Sua história é particularmente recente: a área possui poucas décadas e é marcada pelo nascimento da primeira bebê concebida in vitro, Louise Joy Brown, em 1978, no interior da Inglaterra. A mãe foi submetida a coleta de óvulos e o material foi fertilizado com espermatozoide em laboratório e, depois, transferido para o útero.
Desde então, a adoção de novas técnicas tem sido feita com maior rapidez e segurança, afirma o diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA). Segundo o especialista, os avanços abrangem desde o processo de fertilização até o desenvolvimento do embrião, contribuindo para a reprodução em si. Na primeira etapa, o uso de máquinas garante precisão na transferência de materiais, como no caso do México.
Já na fase de desenvolvimento, equipamentos como incubadoras time-lapse registram e monitoram a evolução do embrião com microcâmeras acopladas. Essa tecnologia permite uma melhor compreensão do seu desenvolvimento cinético.
O impacto dessas inovações pode ser exemplificado no próprio procedimento padrão da reprodução assistida, que evoluiu ao longo do tempo. Antes, era comum se transferir mais de um embrião para o útero, na esperança de que um deles vingasse. O resultado, em alguns casos, era de múltiplas gravidezes, efeito colateral do tratamento. A técnica da seleção genética muda essa dinâmica, pois permite conhecer a qualidade dos embriões e identificar os mais saudáveis.
A transferência para o útero, assim, se foca em apenas um embrião e passa a ser feita com mais assertividade.
A seleção genética permite reduzir o risco de doenças genéticas já mapeadas no casal antes da transferência embrionária. Esse procedimento é realizado por meio dos Testes Genéticos Pré-implantacionais (PGT, do inglês Preimplantation Genetic Testing), que analisam as características cromossômicas e mutações genéticas específicas do material.
Segundo explica o médico Emerson Cordts, da SBRA, é uma forma de garantir uma gravidez com mais sucesso e com menos chances de aborto. “Temos várias doenças genéticas que levam à morte do feto dentro da barriga ou do bebê logo depois do nascimento, com muito sofrimento para o indivíduo e família. Se eu posso fazer esse tipo de seleção, com o objetivo de afastar doenças cromossômicas ou gênicas que conhecemos de antemão, por que não fazer?”.
Clínicas têm otimizado esse tipo de análise a partir do uso da IA e tornado isso um negócio. É o caso da Orchid Health, nos Estados Unidos, que promete bebês mais saudáveis a partir de relatórios do genoma completo do embrião. Atualmente, cada análise custa US$ 2.500 por triagem de embriões — mais de R$ 13 mil.
Isso somado ao custo do tratamento por inteiro: no Brasil, uma pesquisa mostrou que o custo de ciclo completo de FIV variava entre R$ 15 mil a R$ 100 mil em 2023, dependendo do número de tentativas, procedimentos e da localidade da clínica.
Infertilidade e bioimpressão
Novos estudos também focam na infertilidade, condição reprodutiva que afeta uma parcela significativa da população. Em todo o mundo, cerca de 17,5% dos adultos – ou uma em cada seis pessoas – sofre dessa condição. Na região das Américas, a prevalência de infertilidade ao longo da vida é de 20%, mostra relatório da Organização Mundial de Saúde.
Na Universidade de British Columbia (UBC), no Canadá, pesquisadores estudam como a IA e a bioimpressão podem ajudar uma das condições mais severas da infertilidade masculina: a azoospermia não obstrutiva (ANO), caracterizada pela ausência de espermatozoides no sêmen devido a um problema de produção.
A tecnologia é empregada para a busca dos chamados “espermas raros”, com procedimentos de análise e recuperação como a Microdissecção Testicular de Espermatozoides ou microTESE, o que abre possibilidade para tratamentos.
“É muito difícil para o olho humano localizar tantas células por microscópio e, por isso, há uma alta chance de se perder algum esperma raro. Mas, para IA, isso funciona muito bem porque os espermatozoides têm um formato único em comparação com todas as outras células. Isso torna mais fácil treinar um programa para identificá-los”, comenta Ryan Flannigan, que lidera a pesquisa da UBC.
“O objetivo é que possamos identificar um número maior de espermatozoides e haja mais oportunidades para casais realizarem mais de um ciclo de fertilização in vitro”.
Além da busca por espermas raros, outro foco do estudo ainda em andamento é entender o que leva aos problemas de produção das células sexuais masculinas. Para isso, a equipe da UBC utiliza a bioimpressão para criar um modelo de tecidos testiculares humanos usando células-tronco pluripotentes induzidas por humanos. Esse tipo especial de célula-tronco pode se diferenciar em qualquer tipo de célula e, no caso, gerariam células testiculares.
Assim que amadurecerem e apresentarem os sinais da puberdade, momento que ocorre a produção dos espermatozoides no corpo humano, os pesquisadores poderão usá-las para estudar o processo de produção do esperma e criar uma terapia regenerativa.
“A abordagem que estamos adotando é desmontar completamente todo o processo para a personalização ideal, com precisão para atingir qualquer tipo de célula que possa ser disfuncional. Fazendo isso, nós podemos tentar reorganizar as células de uma forma que seja similar ao que encontramos no corpo humano”, comenta o diretor da UBC.
Outra expectativa para o futuro no campo da infertilidade são os dispositivos vestíveis, que devem ser aplicados para resolver problemas de mobilidade dos espermatozoides. Caracterizado como “robôs de esperma”, microhélices foram pensadas por pesquisadores do Instituto de Nanociências Integrativas do IFW Dresden para transportar as células masculinas para seu alvo natural.
O futuro da reprodução
A medicina reprodutiva do futuro reserva ainda mais inovações, ligadas ao avanço da genética e de outras tecnologias. Um dos ramos que deve progredir ao longo das próximas décadas é a edição gênica.
“No futuro, uma ferramenta vai permitir a correção de boa parte dos problemas genéticos incorrigíveis hoje”, explica Cordts, que enxerga essa abordagem como o novo limiar do futuro da reprodução. Neste escopo, uma técnica chamada CRISPR/Cas9 é estudada para realizar alterações precisas e específicas nas cadeias de DNA que levariam a um bebê com determinadas condições.
A lista também inclui a geração de uma gravidez a partir de um útero artificial, prática conhecida como ectogênese. O exemplo mais avançado desse tipo de incubação foi feito por uma equipe de pesquisadores no Japão, que deram suporte ao desenvolvimento de embriões de cabra desde o estágio inicial em um útero artificial por semanas.
Até então, a pesquisa mais avançada envolvia um ambiente extra-uterino – similar ao útero artificial – para o desenvolvimento de recém-nascidos prematuros com risco extremo, como feito por cientistas do Hospital Infantil de Filadélfia, nos EUA.
Essa invenção pode ser, futuramente, uma alternativa às conhecidas barrigas de aluguel e, também, oferecer uma maneira de gestar para aquelas pessoas que não possuem condições para tal, como portadoras da Síndrome de Rokitansky, uma síndrome que afeta uma a cada 5.000 mulheres e afeta o sistema reprodutor feminino. Nesse caso, essas mulheres não possuem útero ou canal vaginal ou os têm em proporções menores e com malformação.
A empolgação com esse panorama de tecnologias convive com um olhar de prudência para os aspectos legais e éticos de uso. De acordo com Flannigan, o desenvolvimento da medicina de reprodução assistida exige atenção: “Temos que pensar de uma perspectiva processual e regulatória para acompanhar como melhor utilizar as tecnologias para otimizar o impacto positivo e, ao mesmo tempo, minimizar o impacto negativo.”
Para Cordts, é necessário lembrar que as novas tecnologias estão ajudando a colocar vidas no mundo e que a bioética precisa andar junto dos avanços da ciência. Esse processo também depende de regulações, que variam entre países. A doação mitocondrial, por exemplo — que utiliza material genético de três pessoas distintas — é permitida na Inglaterra, mas não no Brasil.
O debate sobre ética passa pela análise de benefícios e riscos das tecnologias usadas na reprodução assistida. “Por melhores que as tecnologias sejam, há uma questão de riscos importantíssimos, que não são meramente individuais, mas para a toda a sociedade”, explica Elda Bussinguer, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Um dos pontos principais é garantir que todas as novas ferramentas sejam testadas com rigor e exaustão, para segurança do uso das mesmas.
“Precisamos pensar que a IA precisa de monitoramento e precisa de ser avaliada para que se possam considerar os seus efeitos”, adiciona.
No caso da edição gênica, uma preocupação recorrente é que a tecnologia seja usada para a melhoria biológica dos seres humanos, uma concepção que se aproximaria do conceito de eugenia. Para Cordts, no entanto, esse não é um risco que possa proceder, visto que novas mutações surgem constantemente. “Nunca vamos produzir a pessoa perfeita porque a natureza tem a sua forma evolutiva de criar as suas barreiras. O próprio processo de reprodução assistida ou natural pode criar novas mutações”, explica.
E continua: “Eu tenho 2% de chance de ter uma nova mutação a cada embrião e isso pode levar a uma doença ou não, mas eu não conheço. Por mais que se tente dar um by pass na natureza, é ela quem dá o by pass em nós o tempo todo”.
Por Isabella Marin
Fonte: https://futurodasaude.com.br/medicina-reprodutiva-futuro